*Reprodução da matéria do Valor Econômico, para a qual concedi entrevista.

Por Caroline Marino — De São Paulo – 19/01/2023

No início de 2022, Sofia Helena de Oliveira Barbosa, começou como gerente de produto na Nilo Saúde, empresa de softwares para gestão de relacionamento e cuidado ao paciente. Um dos motivos que a atraiu para trabalhar na healthtech foi o estilo de gestão. A empresa segue, por exemplo, uma prática que começou nos anos 2000 em pequenos negócios do Vale do Silício e se difundiu depois entre companhias como LinkedIn, Bumble e até no banco de investimentos Goldman Sachs: as férias ilimitadas. Esse modelo permite que o funcionário tire o tempo de descanso que for necessário, sem dias fixos e o limite de 30 dias previstos pela CLT. A prática ainda é novidade no Brasil, mas algumas startups já começam a aderir.

“Já tinha marcado para o final de maio um intercâmbio para aperfeiçoar o inglês. Era um plano desde 2020 e não queria deixar de lado”, conta Barbosa. Segundo ela, ao levar a questão para a entrevista, ficou sabendo das férias ilimitadas e que não havia problema em manter a viagem. Era o que faltava para aceitar a proposta. “No começo fiquei apreensiva, pois estava começando na empresa e nunca tinha trabalhado num local com essa flexibilidade, mas a organização e a cultura da Nilo para que o benefício funcione ajudou muito”, conta Barbosa.

A ação é reflexo dos novos tempos, nos quais a flexibilidade na jornada de trabalho é um pilar de atração e retenção de talentos, além de essencial para manter a saúde mental e física em dia.

Segundo pesquisa global feita pela consultoria Gartner com mais de quatro mil profissionais, 93% dos líderes de RH estão mais preocupados com o esgotamento dos funcionários. E recompensar o excesso de trabalho com folgas é visto como uma ferramenta de atratividade. A ideia não é atuar depois do cansaço ou de as doenças surgirem e, sim, antes. Uma das projeções da consultoria é, inclusive, que as companhias mais competitivas serão as que priorizam o descanso.

“Estamos na era da personalização e muitas empresas já flexibilizam as férias, mas quando falamos em dias de folga sem limites, é essencial tomar cuidado para que isso não vire uma ideia de que as pessoas podem trabalhar quando quiserem, numa visão de mundo cor-de-rosa”, diz Rafael Souto, CEO da consultoria Produtive. Segundo ele, é essencial oferecer orientações gerais e trabalhar para construir uma cultura de autonomia com responsabilidade. “Saber usar a liberdade é uma construção.”

Isadora Kimura, cofundadora da Nilo Saúde, que tem 120 funcionários, reforça que não se trata de incentivar as pessoas a tirarem folgas o tempo todo, mas mostrar que o time tem autonomia para identificar, por exemplo, se precisa de um tempo para cuidar da saúde mental. “Vemos muitos casos de pessoas no limite, mas que não têm coragem de pedir folga ao gestor. Aqui queremos que as pessoas se sintam donas do seu bem-estar e não precisem adoecer para ter um tempo livre”, afirma Kimura.

Segundo ela, o principal pilar para a ação dar certo é a cultura da empresa. “Autonomia e responsabilidade, assim como flexibilidade na forma de atuar e entregar as demandas, são parte do nosso jeito de trabalhar e questões reforçadas desde o recrutamento”, explica. A única regra é avisar com antecedência ao gestor e planejar bem a saída, com todas as entregas alinhadas. Isso varia conforme o tempo de afastamento. Para folgas de um dia, o funcionário deve comunicar uma semana antes, para as de até sete dias, duas semanas antes, e mais de 15 dias, o aviso deve ser feito com um mês de antecedência.

A empresa disponibiliza uma cartilha que orienta como o benefício deve ser utilizado, e uma das recomendações está relacionada às entregas. Os profissionais devem se comprometer com suas tarefas e observar o momento da empresa, se for uma semana de definição de metas, por exemplo, não é recomendado sair. “Temos objetivos e expectativas bem claras, e os gestores acompanham diariamente o status das atividades, assim como realizam conversas de desempenho e feedback com o time”, explica Kimura. Entre os pontos observados estão: quem será o responsável na ausência do profissional, que projetos não podem parar, quais as entregas no período e o impacto da redistribuição de tarefas para não gerar sobrecarga.

“Duas semanas antes de sair comecei o processo de passagem de bastão para meu gestor e analisei o status das entregas, planejando todas as atividades das cinco semanas que ficaria fora”, explica Barbosa. Ela conta que elaborou uma planilha com todos os dias e entregas, e o responsável por cada uma.

A professora de gestão de carreira e recursos humanos Elza Veloso, coordenadora no mestrado profissional da Fundação Instituto de Administração (FIA) recomenda que, antes de oferecer o benefício, o RH realize um mapeamento minucioso de todas as áreas e suas demandas para entender o impacto da ausência de alguém no time. “Depende muito do setor. No varejo, por exemplo, as coisas não podem parar e é essencial estabelecer a melhor forma de trabalho para não gerar sobrecarga”, diz. O segundo passo, é capacitar os gestores sobre o tema e, a partir disso, estabelecer um manual de boas práticas. Para ela, o segredo é o planejamento e a conscientização sobre a autonomia com responsabilidade. Isso porque, quando se perde a delimitação, perde-se também os parâmetros. “Se não há regra, é preciso criar uma filosofia sobre o tema”, completa Souto.

A Noh, fintech que atua como uma carteira digital compartilhada e tem 16 funcionários, é outra que aposta nas férias ilimitadas. “O modelo tradicional CLT de 30 dias de férias sempre me incomodou e, ao fundar o negócio, quis criar um ambiente de trabalho flexível, no qual as pessoas tivessem paixão em estar. Até porque o comportamento dos funcionários é diretamente influenciado pelo equilíbrio entre vida pessoal e trabalho, e o desequilíbrio impacta nos resultados e na produtividade”, diz Ana Zucato, fundadora da Noh.

Para ela, estabelecer essa prática desde o início do negócio ajuda a criar uma cultura forte e bem estruturada de autonomia com responsabilidade. “Muitas vezes, as organizações tratam os funcionários como crianças pedindo que justifiquem tudo.

Precisamos tratá-los como adultos, confiando e dando liberdade de trabalho”, ressalta. Ela reforça que, principalmente na área de TI, na qual os sistemas precisam operar 24 horas, as folgas sem tantas regras são essenciais. “Notamos, com o tempo, que o time ficou mais feliz, com mais energia e gás para trabalhar”, conta. Segundo ela, a única exigência para poder sair é não deixar a peteca cair.

Dhaval Chadha, cofundador da Justos, startup da área de seguros de auto com 92 funcionários, também oferece o benefício e concorda com Zucato. Em sua visão, quando as empresas estabelecem uma série de regras e burocracias, isso não ajuda a criar uma cultura de responsabilidade. “Falamos do tema com frequência, desde os documentos de onboarding e cultura, até nos offsites e treinamentos”, afirma. Para ele, o maior desafio é mostrar às pessoas que isso é de verdade. “Os líderes precisam dar o exemplo para encorajar a equipe”.

“No começo fiquei receosa: será que vai pegar mal e as pessoas vão achar que não estou trabalhando muito”, lembra Lorena Alvarez, gerente de produtos da Justos. Ela tirou uma semana antes de completar um ano de empresa e conta que logo essa sensação passou. O time apoia e colabora quando alguém está de férias. Outro aspecto que ajudou a ter confiança em sair foi o fato de os próprios fundadores usufruírem do benefício. “A prática inverte um pouco o jogo de que a empresa é detentora e os profissionais só estão lá para receber um salário. Estamos todos juntos e somos responsáveis pelo negócio”, diz.

Imagem: weweclub_wewe | Unsplash.com

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