*Reprodução da matéria do UOL, para a qual concedi entrevista.

Para muitos trabalhadores, a relação com o departamento de recursos humanos de sua empresa se resume a ser contratado, remunerado e, eventualmente, demitido. Se essa sempre foi sua experiência, sinto informar: você trabalhou a vida toda num companhia com um modelo muito antigo de gestão de pessoas.

Segundo André Fischer, livre-docente e coordenador dos MBAs de recursos humanos da Fundação Instituto de Administração (FIA), esse foi o primeiro modelo de supervisão de trabalhadores que surgiu, nas linhas de produção industriais do começo do século 20. Muita coisa mudou desde então.

Fischer tem acompanhado essa evolução desde que publicou sua tese de doutorado, em 1998. Hoje, ele propõe quatro modelos de gestão nas empresas brasileiras, e que podem ser localizados numa linha evolutiva que começa com os operários das linhas de montagem clássicas e termina nas equipes reduzidas e altamente qualificadas das fintechs atuais.

Ele também começou a detectar sinais de um novo formato, que desafia as convenções tradicionais, ligado à chamada “uberização do trabalho”. Em serviços como iFood, Rappi ou 99, “a pessoa assume o trabalho e ela mesma é responsável por tudo o que acontece ali , e está sujeita a um sistema de controle que é da própria plataforma”, pondera Fischer.

Clássico, motivacional, estratégico ou competitivo?

“Os modelos originais descritos pelo professor Fischer explicam a maior parte do que a gente precisa entender sobre o assunto”, afirma Elza Veloso, livre-docente pela USP. “Se você é um empresário e quer saber o que precisa fazer para ser mais competitivo em termos de gestão de pessoas, esses modelos vão te ajudar”, resume.

No modelo clássico, surgido com a produção industrial, o RH tem uma atuação limitada: garantir que os trabalhadores batam cartão, realizem suas tarefas, e sejam promovidos ou demitidos de acordo com a performance. “O RH é basicamente um executor. Faz o sistema repetitivo continuar repetindo”, explica Marcos Baptistucci, diretor de RH para o Cone Sul para a Owens Illinois, uma gigante de embalagens de vidro, e MBA pela FIA.

Com o aumento da concorrência entre empresas e o avanço da tecnologia, a necessidade de evitar a evasão de mão de obra levou ao modelo motivacional, que cria benefícios para manter os funcionários satisfeitos e programas para treiná-los. “Quanto melhor preparado está o funcionário, mais satisfeito ele fica, e melhor ele produz”, resume Marcos Baptistucci.

Na década de 70, as empresas passaram a integrar melhor distintos departamentos, como um organismo vivo de sistemas interdependentes. O RH acompanhou essa mudança de visão, se organizando em comitês e tomando decisões coletivas: é o modelo estratégico. “Tudo se discute na forma colegiada, da calibração das metas à validação dos talentos. Se vou falar de finanças, o setor de vendas precisa participar”, exemplifica Marcos.

Por fim, o modelo competitivo se popularizou com as grandes firmas de tecnologia e de consultoria, que precisam reter talentos altamente especializados – daí o nome, já que competem por profissionais entre si. “Essas pessoas precisam de mais autonomia, mas também precisam estar comprometidas com o trabalho, porque não estarão subordinadas a um horário fixo, ou a uma remuneração fixa”, afirma Fischer. “Entra em jogo a remuneração variável, o envolvimento com stock options. O funcionário tem que administrar a própria carreira”.

A influência das leis trabalhistas e da cultura corporativa

“Quanto mais a automação absorve atividades operacionais, mais o trabalhador tem uma função de monitorar o processo, em vez de executá-lo. Nesse sentido, as empresas com modelos clássicos deveriam deixar de existir”, explica Fischer. “Mas, quando você vai a campo, vê que empresas adotam até hoje uma diversidade de modelos”.

Mas muitos fatores internos podem tensionar o cabo de guerra entre modelos. “Quando a cultura corporativa não se forma olhando para as pessoas [desde o começo], isso vira uma grande barreira”, opina Elza. “Tenho alunos que são contratados para avançar o modelo de gestão e não conseguem por causa disso. Uma aluna trabalhou em uma empresa familiar e escutou ‘a gente não acredita em RH, mas tudo bem, faz aí'”.

Fatores externos também podem afetar essa definição de perfil. A atuação de sindicatos, por exemplo, tende a empurrar a gestão de RH para o lado dos modelos clássico e motivacional. Já a flexibilização das leis trabalhistas ou a adoção do home office empurram para o outro lado, o dos modelos estratégico e competitivo.

A “economia de bico” muda tudo

Para André Fischer, os negócios da chamada “gig economy”, ou “economia de bico”, como Uber, iFood, Rappi, desafiam convenções sobre modelos de gestão e talvez exijam a criação de uma nova categoria.

Nesses casos, o vínculo entre um entregador de comida e o aplicativo não é mediado por um conjunto de práticas de RH. E a relação entre ambos é mediada por um sistema resenhas de usuários. Operado por modelos algorítmicos, esse sistema pode ser entendido como a automação de parte do setor de RH. “Nessa situação, a gente vê o uso de dados para administrar as pessoas e o trabalho”, explica Fischer. “O uso de big data e people analytics é algo que não existia antes”.

“O que está em gestação é um novo modelo de gestão de RH”, sugere André Fischer. “Não conseguimos mapear ainda, porque não está pronto, é difícil de fotografar”. Mas neste novo modelo, parte da relação de trabalho é determinada pelo usuário. “Você dar estrelinhas em um aplicativo é, sim, uma prática de RH”, conclui.

Imagem: frantic | Unsplash.com

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