*Reprodução da matéria da Revista Você RH , para a qual concedi entrevista.
Por Pâmela Carbonari e Felipe van Deursen – 03 dez 2024
Qual o papel das companhias diante de catástrofes como as chuvas do Rio Grande do Sul? Veja como algumas lidaram com a tragédia e se preparam para as próximas.
Nas três primeiras décadas do século passado, não houve mais do que 20 desastres climáticos por ano no mundo. Depois disso, só subiu. Segundo o International Disaster Database, da Universidade de Louvain, na Bélgica, a quantidade anual de secas, terremotos, inundações, ondas de calor e de frio, tornados, furacões, nevascas, incêndios florestais e outros desastres naturais passou de 100 nos anos 1970. E, desde 2000, oscila entre 300 e mais de 400.
Isso dá mais de um evento extremo por dia em algum lugar do planeta. São potenciais tragédias humanitárias e econômicas que, do ponto de vista das corporações, significam que elas estão cada vez mais expostas, já que muitas têm unidades em vários países ao mesmo tempo. Em outubro de 2023, por exemplo, o furacão Otis devastou Acapulco, no México, com ventos de até 265 km/h. A tempestade atingiu as unidades da Coca-Cola FEMSA na região, e a empresa precisou investir US$ 33,5 milhões para recuperar a fábrica e os centros de distribuição, ajudar os mais de 1,5 mil funcionários e prestar ajuda humanitária. Apenas sete meses depois, a empresa se viu em situação semelhante, dessa vez
aqui no Brasil, quando as chuvas de maio inundaram sua fábrica em Porto Alegre. “As ações adotadas em Acapulco serviram de aprendizado e foram adaptadas para a resposta no Rio Grande do Sul, diz Cristiane Yamamoto, diretora de RH da Coca-Cola FEMSA Brasil. Unidades fabris e centros de distribuição tiveram que parar as atividades e as operações, e só devem retomar 100% em 2025. Dos cerca de 3,5 mil trabalhadores no estado, 362 tiveram perdas matérias, segunda a executiva.
É impossível não se abalar com esse tipo de tragédia. As consequências de eventos climáticos extremos são incalculáveis e atingem as pessoas direta e indiretamente. Funcionários podem perder móveis, casas inteiras ou, pior, entes queridos. Suas famílias correm risco, a insegurança é constante – o dano psicológico pode ser tremendo.
As empresas, mesmo que preparadas para os estragos diretos em seus ativos, não podem achar que estão seguras. Em 2005, por exemplo, a P&G se precaveu ao instalar sua fábrica de café acima do nível histórico de inundação em Nova Orleans, nos Estados Unidos. Mas ainda assim sofreu com o furacão Katrina, porque muitos funcionários ficaram sem casa e não tinham como se deslocar para o trabalho. Como redução de danos, a P&G os alojou em trailers em uma vila temporária que chegou a ter 500 habitantes.
A Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs) calculou que 94,3% das empresas do estado, que empregam 818,3 mil pessoas, foram atingidas de alguma maneira em maio. As chuvas e inundações deixaram 84% dos municípios em estado de calamidade ou de emergência. Segundo uma estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 13,7% dos postos de trabalho e 9,5% dos estabelecimentos privados foram diretamente afetados.
É uma tragédia que, apesar de já não ocupar tanto espaço no noticiário, continua em curso e cujas consequências serão sentidas por anos. Mas dá para fazer alguma coisa. A experiência
deste ano no Rio Grande do Sul pode trazer aprendizados para as próximas bombas climáticas no país inteiro. Porque, como vimos no retrospecto histórico, elas só tendem a aumentar. É impossível não se abalar com esse tipo de tragédia. As consequências de eventos climáticos extremos são incalculáveis e atingem as pessoas direta e indiretamente. Funcionários podem perder móveis, casas inteiras ou, pior, entes queridos. Suas famílias correm risco, a insegurança é constante – o d ano psicológico pode ser tremendo.
As empresas, mesmo que preparadas para os estragos diretos em seus ativos, não podem achar que estão seguras. Em 2005, por exemplo, a P&G se precaveu ao instalar sua fábrica de café acima do nível histórico de inundação em Nova Orleans, nos Estados Unidos. Mas ainda assim sofreu com o furacão Katrina, porque muitos funcionários ficaram sem casa e não tinham como se deslocar para o trabalho. Como redução de danos, a P&G os alojou em trailers em uma vila temporária que chegou a ter 500 habitantes.
A Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs) calculou que 94,3% das empresas do estado, que empregam 818,3 mil pessoas, foram atingidas de alguma maneira em maio. As chuvas e inundações deixaram 84% dos municípios em estado de calamidade ou de emergência. Segundo uma estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 13,7% dos postos de trabalho e 9,5% dos estabelecimentos privados foram diretamente afetados.
É uma tragédia que, apesar de já não ocupar tanto espaço no noticiário, continua em curso e cujas consequências serão sentidas por anos. Mas dá para fazer alguma coisa. A experiência deste ano no Rio Grande do Sul pode trazer aprendizados para as próximas bombas climáticas no país inteiro. Porque, como vimos no retrospecto histórico, elas só tendem a aumentar.
Redes de apoio para ajuda imediata
Em momentos assim, segundo Elza Veloso, professora do mestrado em Gestão de Negócios da faculdade FIA, em São Paulo. Algumas medidas básicas já fazem a diferença. Por exemplo: criar redes de apoio mútuo entre os empregados, por meio da intranet. Isso permitiria detectar com velocidade necessidades específicas dos funcionários e suas famílias. “Seria possível agir de forma personalizada, de acordo com a maneira como cada pessoa foi atingida. O que ocorre nesses momentos é que alguns podem ter suporte de parentes ou amigos, e outros, não. Então a empresa pode formar uma comunidade eficaz”, explica.
A Gerdau vivenciou isso, mobilizando seus trabalhadores, que assumiram a linha de frente e se voluntariaram a ir às casas dos colegas para entregar cestas básicas e oferecer apoio. Até mesmo os funcionários da companhia nos EUA se uniram e enviaram cartões-presente de R$ 2 mil aos atingidos. A Lojas Renner, por sua vez, criou um fundo de ajuda emergencial que contou com a contribuição de trabalhadores de outras partes do Brasil.
Criar redes de apoio é melhor do que não fazer nada, evidentemente, mas ainda assim pode ser pouco quando se trata da maior tragédia ambiental da história de uma região. Em 2024, diversas empresas tomaram uma série de medidas práticas para enfrentar a crise gaúcha.
A Coca-Cola Femsa adiantou 13º salário e férias dos trabalhadores afetados, além de ajudar com compra de móveis e reformas. As unidades da Bunge em Rio Grande não foram diretamente atingidas, mas ainda assim essa gigante do agronegócio precisou suspender atividades e ajudar funcionários.
Luciane Batista, vice-presidente de RH da empresa para a América do Sul, lembra que Rio Grande, localizada no sul do estado, no fim da Lagoa dos Patos, foi das últimas a serem inundadas, cerca de uma semana após Porto Alegre. “Assim que os efeitos das cheias começaram a chegar na capital, a Bunge formou um comitê de emergência, composto por todas as lideranças locais e nacionais da companhia”, diz. A companhia resolveu parar as operações da fábrica de esmagamento de soja e do terminal portuário que mantém no município. As operações acabaram não sendo atingidas, mas 25 dos 305 trabalhadores foram. A empresa os instalou em hotéis em partes seguras de Rio Grande e prestou auxílio na compra de móveis e utensílios domésticos perdidos.
Um impacto psicológico que não passa]
Um dos que sofreram foi o operador de caldeira Juan Charles Soares, de 34 anos. Ele e a família ficaram mais de 20 dias hospedados em um hotel. “Minha filha fez 4 anos um dia antes de começar a encher. Ela começou a ter ataques de nervos ao ver a água subindo, minha esposa ficou assustada, decidiu sair de casa com os filhos. Eu fiquei por medo de saques, mas quando a água chegou ao nível do joelho, dentro de casa, tive de sair”, lembra. Juan está há cinco anos na Bunge e conta que ficou surpreso com o apoio.
“Em 1998, quando houve uma forte chuva de granizo na cidade, meu pai trabalhava em uma grande empresa, dessas em que todo mundo queria trabalhar, mas ela não ofereceu nenhuma ajuda aos atingidos. Hoje, me senti totalmente amparado”, diz. Ele conta que a Bunge garantiu não só hospedagem e alimentação, transporte para a esposa e a filha, mas também um cartão-presente para recuperar itens perdidos.
A Gerdau passou por situação semelhante à da Bunge. Nenhuma unidade foi atingida, mas ainda assim ela precisou paralisar as atividades em Charqueadas e em Sapucaia do Sul. A empresa, que nasceu em Porto Alegre há 123 anos e hoje é uma das maiores siderúrgicas do mundo, tem 3 mil colaboradores no estado. Desses, 242 foram diretamente atingidos, segundo Flávia Nardon, diretora global de Pessoas e Responsabilidade Social da Gerdau. A companhia antecipou o adiantamento quinzenal e liberou a primeira parcela do 13º, deu uma semana de licença remunerada, fez doações de mantimentos e forneceu serviços de telemedicina em parceria com o Hospital Albert Einstein, de São Paulo. Também investiu R$ 4,8 milhões em geladeiras, fogões, máquinas de lavar, colchões e outros itens essenciais, e está reformando ou reconstruindo as casas danificadas por meio de um programa chamado Reforma que Transforma. “É o maior projeto social da história da empresa”, diz Flávia.
Na também gaúcha Renner, uma das primeiras medidas da empresa foi contratar barqueiros para ajudar no resgate e no transporte de itens de primeira necessidade. A empresa, assim como outras grandes companhias no estado, antecipou férias e 13º, e ofereceu gratuitamente telemedicina aos seus 480 funcionários que moram em bairros alagados.
Trauma coletivo
O retorno gradual ao trabalho pode ser ainda mais delicado para a relação entre as empresas e seus trabalhadores. Isso porque, no calor da tragédia, a solidariedade e os auxílios emergenciais tendem a ser muito maiores do que depois. Além disso, os efeitos psicológicos podem ficar mais nítidos nesses momentos. É nessas horas que as organizações precisam estar ainda mais presentes, inclusive para treinar as lideranças a fim de acolher as pessoas nessa volta.
“O RH tem duas funções principais em momentos assim”, diz Regina Durante, diretora de Gente e Sustentabilidade da Renner. “É um pilar de serenidade em uma crise com muita comoção e um catalisador de apoio, que busca uma rede que acelere ações de ajuda.”
O drama de pessoas que tiveram histórias de uma vida inteira afogadas, o cheiro putrefato que tomava ruas e bairros, o colapso de cidades inteiras, que não viam outra solução a não ser mudar para áreas mais altas. Esse conjunto de horrores produziu um trauma coletivo, ainda latente, que afeta comunidades e, também, empresas. Essas companhias estão aprendendo no dia a dia que, se não houver acompanhamento psicológico efetivo, os efeitos serão ainda piores, inclusive para os negócios. Bunge, Coca-Cola Femsa, Gerdau e Lojas Renner reforçaram seus serviços de acolhimento, por meio de atendimento telefônico gratuito com especialistas.
Na Coca-Cola, assistentes sociais contataram todas as famílias atingidas para oferecer ajuda emocional. A Gerdau ampliou o escopo do atendimento em seu programa: questões psicológicas ainda foram maioria das solicitações (60%), mas houve também jurídicas (20%), sociais (12%) e financeiras (8%). Assistentes acompanharam periodicamente as famílias atingidas.
São ações necessárias para um retorno gradual ao trabalho com mais segurança e empatia, segundo as fontes ouvidas pela Você RH.
Omitir-se pode ser indesculpável
Não ter uma atitude em crises dessa magnitude gera um impacto profundo nas relações. É o que afirma Clarissa Daroit, diretora de Soluções de Gestão de Pessoas na consultoria Mais Diversidade. Para ela, não tomar parte abala a confiança, o que leva à queda na motivação e na colaboração dos funcionários.
“A falta de ação pode ser percebida como falta de empatia e de responsabilidade social, o que afeta negativamente a imagem, as conexões internas e, por consequência, a entrega de resultados”, diz Clarissa. Ela própria é residente em São Leopoldo, uma das cidades mais castigadas, onde 75% da população foi atingida pela enchente do Rio dos Sinos.
Preparados para o pior
“Infelizmente, com as mudanças climáticas, a gente sabe que essa não foi a última, que virão outras catástrofes”, diz Regina, da Renner. Para Clarissa, da Mais Diversidade, a experiência que as empresas tiveram pode trilhar novos caminhos e fazer a diferença no próximo evento extremo. “Após o Katrina, muitas companhias americanas implementaram o apoio psicológico. Na Flórida, adotaram políticas de trabalho remoto e horários flexíveis para garantir segurança durante a passagem de furacões. No Japão, com o terremoto e o tsunami de 2011, empresas criaram fundos de emergência para assistência financeira imediata”, exemplifica.
Ser uma multinacional também ajuda. A Bunge, que atua em mais de 40 países, realiza trimestralmente análises de gestão de riscos ligados às mudanças climáticas com base nas condições das áreas onde ela está presente. “Aplicamos dois cenários climáticos futuros diferentes, que consideram impactos moderados e extremos”, explica Luciane Batista. Para os atingidos, como Juan Soares, da Bunge, a volta ao trabalho com segurança é uma ajuda essencial para o começo de uma nova vida. “A gente vê que as coisas estão se agravando, fica apreensivo. Só de ver minha filha assustada como vi, meu enteado de 18 anos dizendo ‘o que eu faço, o que eu faço? ’, a gente fica com medo”, diz. “Em dezembro, vamos nos mudar, mas temendo passar por isso de novo. ”
Um temor que não é à toa. Afinal, as tragédias passam, mas as cicatrizes ficam. Cabe à iniciativa privada assumir sua parte na responsabilidade por fornecer mais e melhores curativos – já que a cura mesmo, com a situação de urgência climática do planeta, não deve vir tão cedo.
REERGUENDO O RIO GRANDE DO SUL
Além do auxílio a funcionários atingidos, diversas empresas fizeram parte da enorme corrente de solidariedade que tomou o Brasil.
Já existe uma certa tradição na tragédia. Em momento de grandes catástrofes no país, uma onda de solidariedade contagia os brasileiros, sejam pessoas físicas ou jurídicas. O traumático maio gaúcho não foi diferente. O Grupo Carrefour Brasil, por exemplo, doou 500 toneladas de alimentos, água e produtos de higiene, congelou os preços de produtos por dois meses e, para apoiar produtores locais, antecipou pagamentos a cem fornecedores e ofereceu suporte a 10 mil colaboradores, incluindo telemedicina, kits de alimentos e auxílio para perdas materiais. Firmou ainda uma parceria com a cidade de São Leopoldo, transformando uma de suas lojas em abrigo para pessoas e 1.700 cães.
Os barcos financiados pela Lojas Renner realizaram mais de mil resgates e distribuíram 200 mil roupas e calçados, itens de higiene e 117 mil litros de água, beneficiando mais de 100 mil pessoas.
A empresa produziu roupas de inverno exclusivamente para doação.
Desde maio, a Gerdau destinou mais de R$ 44 milhões para iniciativas de recuperação do estado. Desses, R$ 30 milhões foram doados pelo Instituto Helda Gerdau, pela família fundadora Gerdau Johannpeter, para um fundo destinado à reconstrução em áreas como educação, habitação e infraestrutura urbana. A companhia também investiu na construção de 500 novas moradias, doou aço para refazer pontes e instalações públicas e, em parceria com o Detran RS, recuperou veículos danificados, transformando-os em matéria-prima para a indústria.
Já a rede gaúcha de supermercados Zaffari doou 450 toneladas de alimentos e 250 mil litros de água para ajudar as comunidades atingidas. Ela ainda cedeu áreas em quatro regiões de Porto Alegre para apoio emergencial, oferecendo espaço para o acolhimento em parceria com a Defesa Civil e outras entidades.
Imagem: sebastian-unrau | Unsplash.com